A Grande Entrevista: Diretor e Roteirista Brasileiro Dennison Ramalho
Renomado por seus filmes de terror, Dennison Ramalho — pupilo do pai do gênero no Brasil — conversa com Nick Story em uma entrevista especial de Halloween sobre a nova era de filmes de terror brasileiros ao longo da última década

'As boas maneiras' filmado em Alphaville
Conte para nós como você começou a fazer filmes de terror.
Sou um diretor e roteirista de cinema e televisão que se especializou no gênero de terror ao longo da minha carreira. Sempre gostei muito desse gênero, desde criança. Sempre consumi muitos filmes de terror.
No início da minha vida adulta, passei bastante tempo estudando esse assunto, colecionando filmes do gênero, lendo livros sobre cinema de terror, trocando referências e filmes com amigos que amavam e estudavam o gênero.
Decidi seguir uma carreira no cinema, e foi uma decisão natural, considerando o quanto eu já era apaixonado por filmes. Comecei com um curta-metragem.
Dirigi quatro curtas de terror: três produções brasileiras e uma norte-americana filmada no Brasil, que fez parte de uma antologia chamada The ABC's of Death 2. Dirigi um dos episódios que faziam parte do filme.
Seus primeiros filmes foram um sucesso?
Meus curtas foram descobertos por festivais internacionais, não apenas aqueles especializados em filmes de fantasia, mas também festivais de cinema em geral.

Diretor e roteirista Dennison Ramalho
Eles foram exibidos no Clermont-Ferrand, no Festival de Cinema BFI de Londres, no Festival de Cinema Fantasia no Canadá, no Festival de Sitges, na Espanha... Então, ao longo de quase 20 anos fazendo curtas, acabei me estabelecendo. Quando comecei, não havia tantas pessoas fazendo isso como hoje, então meus filmes eram bastante reconhecidos. Ao serem exibidos em um festival, ganhavam prêmios no Brasil e no exterior.
Existem outros diretores no gênero de terror que inspiraram você?
Tenho um grande mestre, alguém que tem uma certa reputação no cinema de terror — um diretor brasileiro que fez a maior parte de seu trabalho entre os anos 60 e 80 — José Mojica Marins. Ele criou um personagem chamado Zé do Caixão, conhecido fora do Brasil como Coffin Joe.
Fale sobre o Zé do Caixão.
José Mojica Marins foi tanto o diretor quanto o ator que interpretou esse personagem. Ele é único na história mundial do cinema de terror, porque é a criatura e o criador que se fundiram quase de forma imperceptível. Seus filmes foram descobertos fora do Brasil nos anos 90 e se tornaram cults imediatamente.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma, Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver, O Despertar da Besta, Delírios de um Anormal, O Estranho Mundo de Zé do Caixão.

Depois que esses filmes foram descobertos pelo mundo, Mojica se tornou um diretor icônico no gênero, pois o cinema que ele criou nos anos 60 era extremamente provocativo, extremamente violento, iconoclasta, com muito erotismo…
Ele fez um cinema bem extremo para a época, durante a ditadura militar no Brasil.
Você trabalhou com o Mojica?
Nos anos 60, ele começou uma trilogia de filmes do Zé do Caixão, com seu primeiro filme de terror chamado
À Meia-Noite Levarei Sua Alma, e continuou três anos depois com um segundo,
Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver. Havia um terceiro para encerrar a trilogia,
Encarnação do Demônio, que não foi feito até 2006. Eu co-escrevi o roteiro com o Mojica, e fui o diretor assistente. Dediquei anos da minha vida a esse projeto, e não era o meu filme, era o filme do meu mestre.
Antes do Mojica, houve outros grandes diretores brasileiros no gênero de terror?
Não posso falar sobre o que aconteceu no cinema de terror no Brasil antes de 1963, quando o primeiro filme do Zé do Caixão foi lançado. Sei que existem historiadores e especialistas que escreveram sobre o assunto e que encontraram alguns títulos; uma produção pequena e tímida que flertava com o gênero.
Mesmo depois do Mojica e seu sucesso comercial, o cinema de terror nunca conseguiu estabelecer um público no Brasil, nem uma frequência regular de produção. Nos anos 70 e 80, durante a era da Boca do Lixo, foram feitos alguns filmes de terror no país.
Mas todos, ou quase todos, eram direcionados a um público masculino. E todos, ou quase todos, eram praticamente filmes de exploração sexual. Filmes de terror com abordagens muito sexuais. Alguns mergulhavam na pornografia softcore, criada por diretores como Fauzi Mansur, John Doo e Francisco Cavalcanti. O próprio Mojica faz parte dessa era da Boca do Lixo, já que ele fez filmes de terror nos anos 70, com e sem o Zé do Caixão.
Um diretor do Rio de Janeiro também fez alguns filmes entre 1970 e 1980 que os críticos não designaram como terror, mas como "terrir", que eram comédias de terror muito caóticas. Esse diretor se chamava Ivan Cardoso.
Boca do Lixo explicada
A era da Boca do Lixo foi um ciclo muito ativo na produção cinematográfica brasileira entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1990. E por que esse nome? Há uma região no centro de São Paulo que abrigava muitas empresas de produção cinematográfica e distribuidoras nesse período, com muito cinema na região. Toda a indústria cinematográfica e o ciclo da "pornochanchada", as comédias eróticas brasileiras, foram produzidos quase que inteiramente lá. O cinema brasileiro de teor adulto também começou ali. O cinema da Boca do Lixo tem esse apelido porque suas produções tinham como público-alvo os adultos e eram muito sexualizadas.
Qual é a reputação do cinema brasileiro atualmente?
Até agora, o “cinema brasileiro” sofre um pouco por causa dessa reputação. Ainda hoje há pessoas, espectadores mais antigos, que não assistem a filmes brasileiros porque dizem que são apenas mulheres nuas e palavrões, o que é um grande equívoco. Mas essa má fama, do cinema erótico e afins, se estabeleceu durante esse período da Boca do Lixo, quando também foram feitos alguns filmes de terror.
Esse período do cinema brasileiro terminou com a extinção da
Embrafilme, a predecessora da
Ancine. O governo de Fernando Collor extinguiu a Embrafilme, e com seu fim, o cinema brasileiro passou por algo muito parecido com o que estamos passando agora: um período de seca, com pouquíssima produção, porque o financiamento público para a produção cinematográfica acabou.
Foram feitos filmes após o período da Boca do Lixo?
Havia pouco cinema brasileiro e nenhum cinema de terror brasileiro, até onde eu sei. Até 1998, quando fiz meu primeiro curta-metragem, e por volta de 1995, quando Peter Bayersdorf, um cineasta independente de Santa Catarina, começou a fazer produções diretas para vídeo — e ele continua até hoje. Ele é um cineasta, mas seu método de produção não é voltado para grande exploração comercial.
Então, nos anos 90, o cinema brasileiro teve um retorno. Acredito que faço parte desse retorno, especialmente do terror brasileiro, com meus curtas-metragens. É importante destacar o que aconteceu após o
Encarnação do Demônio, do José Mojica (lançado em 2008), — abriu portas para novos cineastas, como Marco Dutra, Juliana Rojas, Rodrigo Aragão, Marcos de Brito... Eles conseguiram criar novos longas, uma nova produção do cinema de terror brasileiro contemporâneo, e por isso eu também, um pouco tarde, entrei nessa nova onda com meu primeiro longa,
Morto Não Fala, lançado em 2019.
Mojica fazia parte de uma cena alternativa mais ampla no Brasil?
Mojica não faz parte da cena porque o dele era um cinema fantástico: cinema de terror sem nenhum tipo de conexão política. Mojica é um cineasta de exploração. Ele realmente queria impressionar, chocar, e sempre admitiu ser um cineasta sensacionalista.

'A sombra do pai' filmado no Butantã
Por que você acha que os filmes do Mojica fizeram tanto sucesso?
Acredito que todo público de cinema do mundo quer assistir a uma narrativa original que traga algo diferente para sua experiência de vida, para seu repertório cultural. Acho que há muitos consumidores de filmes de terror internacionais por aí, pessoas como eu que se interessam pelo terror como um gênero amado, que assistem e estão sempre buscando filmes de terror lançados pelo mundo. Eles buscam uma compreensão mais profunda e sempre exploram ou colecionam a totalidade dessa linguagem, não apenas o que é feito no cinema norte-americano e britânico, mas também em filmes de terror japoneses, italianos, brasileiros, singapurianos e coreanos. Acho que há um elemento cultural nessa questão. Que história o filme de terror brasileiro conta que é diferente do que estou acostumado? Que tipo de pessoas verei em um filme brasileiro? Que tipo de cenário vou ver em um filme brasileiro?
Penso que é essa curiosidade que atrai essas pessoas para os nossos filmes. Festivais como o Fantasia Film Festival no Canadá, o Festival de Sitges, o Fright Fest, em Londres, trazem obras do mundo todo para criar um panorama global do que é feito no gênero.
Como você teve a ideia para o seu filme
Morto Não Fala?
Esse filme é baseado em um conto de terror curto escrito por Marco de Castro e é minha segunda adaptação dele. Marco de Castro, além de escritor de terror, foi por muitos anos repórter policial e cobriu muitos incidentes violentos na periferia de São Paulo como jornalista. Então suas histórias de terror geralmente se passam na periferia de São Paulo, e seu material é baseado em sua própria experiência como repórter. Pessoas que ele conheceu, favelas por onde passou, massacres que testemunhou, ele foi lá e acompanhou a investigação com a polícia.
Eu acho esse universo muito rico porque é bastante extremo e natural, e conta as histórias de uma realidade muito dura de São Paulo, das periferias da cidade.
As pessoas dizem: "Nossa, seus filmes têm muitas críticas sociais". Concordo com essa afirmação, mas minha intenção principal era fazer um filme de terror. Eu achava que a originalidade dessas histórias vinha do fato de se passarem no Brasil e em
São Paulo e serem bem brasileiras.
Por que você acha que diretores estrangeiros poderiam se interessar em filmar em São Paulo ou no Brasil?
Além dos tipos de locais em que você poderia filmar no Brasil, a beleza natural, há o fato de que eu sou brasileiro, moro e trabalho no centro de São Paulo. Essa é a minha realidade. Qualquer filme de terror que eu faça aqui significará muito mais para mim, por isso sou apaixonado por fazer filmes brasileiros.
O Brasil tem coisas que outros países têm, é claro. Tem as periferias das cidades, as favelas. Mas o país também possui paisagens que você não encontra em nenhum outro lugar do mundo. Por exemplo, o
Pantanal. Acho que é um país muito fotogênico.
Acredito que diretores estrangeiros, o público estrangeiro, deveriam ser curiosos para conhecer o Brasil, entender o que vivenciamos, como é a paisagem, os locais urbanos, os recursos naturais, as verdadeiras periferias, a música, a cultura... Nossos filmes mostram um pouco disso. Meus filmes não representam exatamente o melhor, mas o mais perigoso, o mais assustador, o mais violento.

Filmagem de 'Pinball' em São Paulo
Por último, qual a dificuldade de produzir filmes de terror no Brasil atualmente?
É sempre um desafio, e agora é ainda maior. O mercado audiovisual brasileiro está nas mãos das plataformas de streaming, e é bom que essas plataformas tenham mostrado interesse em fazer diversas produções brasileiras, atendendo a uma ampla gama de gostos audiovisuais e cinematográficos. Já foram produzidas séries de terror brasileiras. A Globoplay fez
Desalma; a Netflix fez aquela série de zumbis,
Reality Z. Sei de outras obras brasileiras de gênero de terror que entrarão em produção em breve.
Acredito que filmes brasileiros fantásticos surgirão mesmo durante a seca que a indústria está enfrentando, e isso deve durar alguns anos graças ao financiamento das plataformas de streaming. Não acho que tenha sido apenas essa tecnologia que criou essa nova onda, essa primavera do cinema de terror brasileiro, de 2008 até agora. Penso que isso ajudou muitos curtas-metragens de terror a surgirem, mas bem poucos longas-metragens foram feitos do início ao fim. O que realmente sustentou nossa pequena produção de gênero foi o dinheiro público de bolsas federais e estaduais brasileiras, que agora quase parou completamente.
Obrigado, Dennison, pelo seu tempo. E por compartilhar sua lista de filmes essenciais conosco (veja abaixo). Também acrescentaria à sua lista o filme Pinball — um curta dirigido por Ruy Veridiano e filmado pelo diretor de fotografia Alziro Barbosa. É a história de um jovem que faz um feitiço vodu que dá errado, foge do cemitério e se encontra cara a cara com a Morte em um fliperama mal iluminado e decadente. Ele tenta enganar a Morte em um último jogo de pinball.

Filmagem de 'Pinball' em São Paulo
Lista de Dennison Ramalho dos principais filmes brasileiros que devemos assistir
Central do Brasil
Walter Salles, 1998
Cidade de Deus
Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002
Terra em Transe
Glauber Rocha, 1967
Eu Matei Lúcio Flávio
Antonio Calmon, 1979
Pixote, a lei do mais fraco
Hector Babenco, 1981
Bacurau
Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, 2019
Mato eles?
Sérgio Bianchi, 1982
Cronicamente inviável
Sérgio Bianchi, 2000
Principais filmes brasileiros de terror
Mangue Negro
Rodrigo Aragão, 2008
Cemitério das Almas Perdidas
Rodrigo Aragão, 2020
O Animal Cordial
Gabriela Almeida, 2017
Morto não fala
Dennison Ramalho, 2018
A Sombra do Pai
Gabriela Almeida, 2019
As Boas Maneiras
Juliana Rojas e Marco Dutra, 2018
Esses são os filmes recomendados por Dennison Ramalho, diretor e roteirista brasileiro, para quem deseja explorar a cinematografia brasileira e o cinema de terror brasileiro.
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